Estudos

sábado, 1 de outubro de 2011

O Eu Interior


Já muito se disse e escreveu acerca da natureza ilusória de nossa realidade imediata. Visões quase sempre alicerçadas em profundas escolas da filosofia espiritualista do Oriente, também no pensamento ocidental viceja semelhante ideário como nas obras de Tolle.

Não é fácil assimilar que tudo é ilusão. Sempre que ouvimos algo assim pensamos em miríades de interpretações que fazem a ideia básica mais palatável. O nosso senso objetivo, principalmente com nossa formação ocidental, exige tiranicamente que tenhamos à mão uma interpretação tolerável para isso.

Não são poucos os que pregam a impossibilidade de compreensão analítica, remetendo às plagas da intuição e abstração livre a percepção transcendente necessária à assimilação de que tudo é ilusão.

Mas podemos conceder uma trégua à dicotomia "razão / intuição", buscando pensar como sempre o fizemos mas transcendendo os limites do que pareça, de imediato, absurdo.

Todos concordam que o mundo objetivo com o qual temos contato nos vem à consciência através dos sentidos que o percebem. A visão, o paladar, o olfato, o tato e a audição são os sentidos da percepção ordinária, através dos quais construímos o ambiente em que vivemos.

Mas todos esses cinco sentidos imediatos da percepção humana não passam de sinais elétricos encaminhados ao cérebro para interpretação. Não há dúvida possível. A percepção de tudo o que existe é a resultante de um imenso enredamento de sinais elétricos que o cérebro bem cuida de concatenar e transformar em fenômeno perceptivo.

Curiosamente, quando nos detemos na intimidade de um momento conosco mesmos experimentamos uma leveza sedutora, algo muito suave que nos convida prazerosamente ao devaneio.

Eis aí o ponto crucial.

A Natureza dota o ser de uma infinitude de instintos (ou impulsos) que conduzem à sobrevivência da espécie. Nesse estágio de império dos sentidos, a percepção do ser interior teve que dar lugar aos automatismos imprescindíveis à conquista do meio ambiente desde as remotas eras em que quase não diferíamos dos animais sem consciência contínua.

O ser consciente tinha em mínima parte sua percepção interior, porquanto a vazão dos procedimentos instintivos tinha que estar, sempre e sempre, no ponto máximo das prioridades do comportamento.

O veio denso e extremamente irritadiço da secreção das supra-renais inundavam constantemente o ser, pondo-o pronto a lutar ou fugir sob a abençoada ansiedade da constante prontidão.

Não havia muito espaço para a percepção interior... Ademais, o ser necessitava bem adestrar-se nas últimas provas dessa formação animal antes de apreciar a valoração de sua conduta.

Bem sabemos o que é a noite. Compreendemos bem o que é o dia. No entanto, quando o Astro se pôe no horizonte e as estrelas não podem ser ainda percebidas, estamos naquela transição em que o dia agoniza e a noite ainda não nasceu.

É uma transição. Como tal, dura bem menos do que as fases que intermedeia. Mas, ainda assim, enquanto vigente confunde o viajante em meio ao cinza que permite ver sem perceber claramente.

É aí que estamos...

Na transição entre o animal e o puramente humano. Temos ainda as forças pujantes de nossa vida instintiva e aquela voz interior no martírio de um sussurro a que não damos a devida atenção.

Mas o concerto de nossos condicionamentos instintivos foi tão maravilhosamente desenvolvido que nos reveste a mente mesmo nos mais avançados processos intelectuais.

Criou-se, assim, um "eu" submetido aos contornos da imensa gama dos apurados sentidos imediatos. Estabeleceu-se aquele "eu" que conseguiu emergir desse revolto e denso oceano de condicionamentos. É o nosso "eu" que se vangloria de ter o racionalismo frio e objetivo de um predador ao adotar a tática de perseguição e ataque.  O "eu" que lambe os filhotes e morre para defendê-los. O "eu" que, de tanto reconhecer-se no topo dos sentidos, identifica-se consigo mesmo a ponto de reputar-se o único e verdadeiro "eu". 

O "eu" imediatista ganhou tamanha desenvoltura que se julga independente da essência. 

Mas a pequena voz interior insiste em nos despertar para outra realidade, menos aparente, mais profunda, que se situa na geratriz de tudo o que veio a se tornar esse enredamento de instintos e razão. A voz interior do nosso Eu essencial.

Quando nos demoramos conosco mesmos é esse "eu" que nos tenta afastar em direção ao mundo externo no qual "ele" percebe-se único e reina. A voz interior permanece em seu sussurro.

Eis aí a condição da maioria das pessoas. Sente o Eu interior como uma força abrangente e impessoal, exatamente por não se vincular aos limites dos sentidos. E uma enorme dificuldade em dar vazão a essa voz interior. Porque, do alto de seus imensos condicionamentos, tenta identificar, analisar e esquadrinhar uma tática para atingir o seu interior, exatamente a postura que impede essa percepção.

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