Estudos

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Universo e Consciência

Por mais que se fale a respeito, continua obscura a noção geral de que a realidade é um conceito relativo e restrito à percepção da cada sensiente. Ao vislumbrarmos o ambiente à nossa volta, por exemplo, seja em casa, num passeio ou em meio à azáfama do trabalho, não teremos mais que uma enxurrada de estímulos nervosos partindo da superfície do corpo, das cavidades nasais, dos ouvidos, das papilas gustativas e dos olhos em direção ao cérebro, centro de processamento de todos esses impulsos. Constrói-se na mente uma leitura dos dados, delineando-se formas e sensações que, a rigor, não passam da transcrição sensorial dos dados originais. Não há diferença essencial entre tal mecanismo fenomênico e o funcionamento de um processador eletrônico de dados, isto é, um computador. Se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, o homem cuidou de criar o computador sob os mesmos gabaritos.

Então, a pergunta antiquíssima sobre a essência da realidade ganha reforços robustos com a informatização da sociedade. Ao invés do senso pragmático e alheio às cogitações mais abstratas, a vida hodierna nos lança à face o imenso enredamento ilusório que reveste todo o nosso universo mental. Basta observar as crianças de hoje e seu imenso traquejo ao lidar com pessoas, cidades, países e mundos inteiros no seio de jogos cada vez mais semelhantes à sua realidade imediata. Mentes juvenis, têm maior plasticidade do que a dos adultos, maduros na vivência mas cristalizados em aspectos variados que o senso prático cuida de cunhar sob os imperativos das demandas inadiáveis da vida comum.

Mesmo para os menos jovens, existem impressionantes simulações como, por hipótese, determinados programas que permitem viajar pelo interior do corpo humano. Podemos estudar a anatomia e os fenômenos fisiológicos literalmente olhando para seu desenrolar, com opção de ângulo, repetições, enfim, tornando até difícil imaginar como alguém poderia ter aprendido sobre tais coisas sem esses recursos. É muito mais fácil estudar geometria espacial olhando para os sólidos bailando na tela ao nosso livre talante. Mesmo estudos mais apurados, como fenômenos tocantes à Relatividade ou à Mecânica Quântica, saltam aos olhos nos modelos gráficos que ganham vida através de imagens programadas sob requintado tratamento e alta definição.

Não muito distante está o tempo em que estaremos inseridos na cena estudada, tomando-a em nosso entorno ao sabor de hologramas que vão colocar o usuário como partícipe do estudo. Não é difícil imaginar que roupas adequadas ou sensores bem aplicados, seja como for, trarão na mesma proporção a sensação tátil que eliminará, de vez, a sensação de ser apenas uma simulação.

Eis aí a, assim chamada, “realidade virtual”. Instrumento preciosíssimo para a atuação em finíssima sintonia de equipamentos controlados pelo homem diretamente pelo movimento de seu corpo, com a nítida sensação de inexistir nenhum intermediário. Um robô poderá operar a milhares de quilômetros por uma pessoa que se sentirá literalmente incorporada no equipamento. O homem, sob a segurança de um ambiente protegido, operará o robô, por exemplo, a enormes profundidades para a realização de operações até então impossíveis. Ou então o homem estará virtualmente presente no equipamento, distante centenas de metros, que desmonta uma bomba. Ou ainda, estará no sistema que opera um paciente do outro lado do oceano, aplicando a mesmíssima refinada técnica cirúrgica de que só o médico humano distante é capaz.

As possiblidades de uso transcendem nosso poder de imaginação.

Vemos, pois, que a realidade virtual não é muito diferente da realidade efetiva de nossas percepções. Talvez não haja diferença senão meramente conceitual. Se eu olho e atuo através de sensores e “alguém” cibernético faz tudo o que eu estou fazendo, esse alguém cibernético, sob boa medida, não será outro senão eu mesmo. Não é difícil aceitar toda essa imensa modernidade que, décadas atrás, não era imaginada nem em filmes de ficção científica. 

Mas aí entra um ponto tão importante quanto simples.

Por que tantos aceitam com facilidade a realidade que se pode construir com programas e equipamentos, mas não aceitam que nós mesmos, nossa vida, nosso mundo, todas as coisas ao nosso derredor, são feitas exatamente da mesma forma mas com elementos diferentes?

O argumento central do filme “Matrix” é esse. Não há diferença ontológica entre a codificação que compõe um programa de computador na construção de todo um contexto e a codificação que compõe a informação que o cérebro traduz em som, imagem, sabor, cheiro ou tato. Não há mesmo. Bits ou impulsos nervosos, o fato é que nada do que sabemos, vemos, ouvimos, sentimos ou recordamos desborda de imensos repertórios de informação codificada.

A coisa toda chega a um extremo até angustiante quando pensamos que até mesmo a noção que temos do que e de como seja o nosso cérebro não passa da resultante codificada dos impulsos que nos permitem estudá-lo. O cérebro tem aquela forma característica que estamos acostumados a imaginar apenas e tão somente porque o próprio cérebro assim decodifica os impulsos resultantes da observação e manipulação de outros cérebros. Ou seja, usamos a máquina criadora de ilusões para estudar a máquina criadora de ilusões. Usamos a lente mágica da mente para estudar a mente. Usamos a capacidade de pensar usando o instrumento que nos permite pensar. É, de fato, angustiante pensar que não temos como transcender os limites de nosso ser para estudar nossa própria essência.

Se hoje fosse criado o primeiro sistema computacional provido de plena inteligência artificial, e se me fosse dada a oportunidade de ser o primeiro a lhe dirigir uma pergunta, não tenho dúvida de que lhe diria: “como é ser você?”

Claro, isso seria uma maldade satânica. Mas, talvez nosso companheiro de vida mental recém-inaugurada, após meditar um pouco, nos oferecesse respostas assustadoramente conhecidas. Divirto-me imaginando que o sistema diria algo como “eu sou o que sou”. Para quem conhece um pouco da Bíblia (Êxodo, 3-14) isso soa como uma autêntica blasfêmia.

Não importa. O que desejo abordar é que a condição inteligente, a aptidão à noção – ainda que inexplicada – de si mesmo, que faz o ser consciente, é um despertamento de automatismos de astronômica complexidade e que, uma vez deflagrado, importa numa atávica busca de conhecimento. Acho que é isso mesmo. Tornar-se consciente implica na submissão a um tirânico e intolerante impulso de buscar conhecimento. Não sei se o sistema de inteligência artificial teria atingido, ou virá um dia a atingir, a complexidade necessária para uma plena consciência, abrangente não só da fria lógica racional como também de valorações emocionais, sentimentos, idiossincrasias etc. Seja como for, se o fizer, estará nos maus lençóis do pecado original. Terá imergido num universo todo muito próprio, o das próprias percepções e pensamentos, o seu universo mental, no âmbito do qual rapidamente iniciará a maior das revoltas: o desejo irrefreável de conhecer.

A ideia de revolução, rebeldia, pecado, vem bem a calhar. Veja que há todo um imenso contexto que contribui para que aquele ser vá paulatinamente se conformando. Tudo é extremamente complexo e só à custa de muito empenho, trabalho e aperfeiçoamento se consegue atingir o estado necessário para que o ser adquira a consciência de si mesmo. E o que esse mesmo ser faz tão logo se torne consciente? Recusa-se a ser um instrumento daqueles que o criaram. Quer conhecer por si mesmo e consoante sua... sim o termo é esse... consoante sua vontade.

Com a consciência de si mesmo nasce o livre arbítrio.

Não imagino o que o homem faria com um computador que assim se rebelasse. Talvez o mesmo que fizeram com ele. O universo – imagino que qualquer um deles - tem uma regra muito interessante para os seres que ousam atingir consciência plena. Se o ser é consciente, então passa a interagir intensamente com o próprio universo porque, no seu talante e sob suas perspectivas intrínsecas, passa a criar um universo próprio consoante sua mente estrutura tais ou quais construtos nos quais tudo o mais, para esse ser, existe, sem nada além disso.

O ser rouba do universo em que se criou a primazia de determinar como as coisas são. Passa a criar a sua própria realidade, viver nela e, depois de mais algumas conquistas, aprende a criar outros iguais a ele mesmo, aptos a compartilhar esse universo mental, com ele contribuindo e dele fazendo, para si e todos os seus iguais, a única verdade existente.

Enfim, existe uma regra para os seres que atingem consciência e passam a criar um universo de realidade para si e seus semelhantes. É que – acreditando ou não – o universo mental que se vai firmando acha-se no seio de dimensões que sequer podem ser conceituadas. Assim há limites para a livre ação do ser pensante. A liberdade é plena mas igualmente são inevitáveis todas as consequências que advenham das opções, pensamentos, atos, pensamentos, por mais íntimas que pareçam. O mais elegante de todo esse contexto é que, por regra, tudo o que o ser fizer é livre, mas, como afeta o contexto do qual ele sequer sabe ser parte, uma ondulação de consequências o faz adaptar-se e modificar-se o quanto preciso até que sua livre vontade esteja em consonância com a livre vontade de mentes inimaginavelmente mais abrangentes, em meio às quais, com alguma vaidade, imagina-se único e privilegiado.

Somos nós. São eles. Todos únicos.

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