Por ser a corrente mais
conhecida mesmo fora dos meios esotéricos, o Espiritismo bem nos serve de fonte
para cogitações acerca da natureza humana e sua relação com o senso de Bem e
Mal.
Obra: O Céu e o Inferno – Allan Kardec, pág.
105/106, Ed. FEB.
[...] Sem
recuar às primeiras épocas, vemos à volta de nós as pessoas dos nossos campos,
e nos perguntamos que sentimentos de admiração nelas despertam o esplendor do
Sol nascente, o céu estrelado, o cantar dos pássaros, o murmúrio das ondas
claras, os campos cobertos de fl ores! Para elas, o Sol se ergue porque tem
esse hábito e, sob a condição de que ele dê bastante calor para amadurecer as
colheitas, e não muito para calciná-las, é tudo o que elas querem. Se olham o céu
é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; se os pássaros cantam ou
não, isso lhes é indiferente, contanto que não comam o seu grão; em lugar do
canto dos rouxinóis preferem o cacarejar das galinhas e o grunhir dos seus porcos;
o que pedem aos regatos claros ou lodosos é que não sequem nem inundem as
terras; aos campos, que dêem boa erva, com ou sem fl ores. É tudo o que desejam,
dizemos mais, é tudo o que compreendem da natureza, e, no entanto já estão
longe dos homens primitivos.
3. Se
nos reportarmos a estes últimos, nós os vemos, mais exclusivamente ainda, preocupados com a satisfação das
necessidades materiais; o que
serve para abastecê-los e o que pode prejudicá-los resume para eles o bem e o
mal nesse mundo. Eles crêem em um poder extra-humano; mas, como o que
lhes traz um prejuízo material é o que mais lhes importa, eles o atribuem a
esse poder, do qual, apesar disso, fazem uma idéia muito vaga. Não podendo
ainda conceber nada fora do mundo visível e tangível, eles imaginam que esse
poder resida nos seres e nas coisas que lhes são prejudiciais. Os animais nocivos, portanto, são, para
eles, os representantes naturais e diretos desse poder. Pela mesma razão,
viram nas coisas úteis a personificação do bem: daí o culto dispensado a certos
animais, a certas plantas e mesmo a objetos inanimados. Mas o homem geralmente é mais sensível ao mal que ao bem; o bem lhe
parece natural, enquanto que o mal o afeta mais; eis por que, em todos os cultos primitivos, as cerimônias em homenagem
ao poder maligno são as mais numerosas; o medo prevalece sobre o reconhecimento.
Durante muito tempo, o homem concebeu apenas o bem e o mal físicos; o sentimento
do bem moral e do mal moral marcou um adiantamento na inteligência humana;
somente então o homem entreviu a espiritualidade, e compreendeu que o poder
sobre-humano está fora do mundo visível, e não nas coisas materiais. Esse foi o
trabalho de algumas inteligências de alta qualidade, mas que não puderam, no entanto, superar certos limites.
4. Como se via uma luta incessante entre o
bem e o mal, e, freqüentemente, o mal suplantar o bem; como, por outro lado,
não se podia racionalmente admitir que o mal fosse a obra de um poder benéfico,
chegou-se à conclusão de que existiam dois poderes rivais governando o mundo.
Daí nasceu a doutrina dos dois princípios: o do bem e o do mal, doutrina lógica
para essa época, porque o homem ainda era incapaz de conceber uma outra, e de
penetrar a essência do Ser supremo. Como poderia ele compreender que o
mal é apenas um estado momentâneo de onde pode surgir o bem, e que os males que
o afl igem devem conduzi-lo à felicidade, ajudando-o no seu adiantamento? Os limites
do seu horizonte moral nada lhe permitiam ver fora da vida presente, nem para a
frente, nem quanto ao passado; ele não podia compreender que havia progredido,
nem que ainda progrediria individualmente, e muito menos que as vicissitudes da
vida são o resultado da imperfeição do ser espiritual que está nele, que
preexiste e sobrevive ao corpo, e se purifica em uma série de existências, até
que ele tenha atingido a perfeição. Para compreender o bem que pode surgir do
mal, não se pode analisar apenas uma existência; é preciso abranger o conjunto:
só então aparecem as verdadeiras causas e seus efeitos.
Os valores cosmoéticos, as
verdades universais, só a pouco e pouco vão descendo até a restrição absoluta
na matéria abre evos e evos de contínuo aperfeiçoamento na escala evolutiva. O
aprisionamento da Vida nos estritos limites da matéria, ainda eons antes da
individualidade, embala-se nos condicionamentos de atração e repulsão com que
os grânulos de fluidos condensados se anunciam no teatro das partículas-onda.
Na picosfera do microcosmo, agitam-se em intensas movimentações de energia,
adestrando-a à finalidade de estabilização temporária enquanto feixe de forças
sob repouso potencial.
No outro extremo do plano
das formas, metazoários são inimagináveis macrocosmos orgânicos que arrebanham,
em si, incontáveis populações de macromoléculas codificadas para a programação
de sistemas complexos que agregam células, tecidos, interações de toda sorte
sob comunicações bioquímicas, como resultante do irresistível impulso maior que
determina, neste ponto da Evolução, a cristalização da Vida.
Inauguram-se os primórdios
da inteligência contínua, agregando na consciência fragmentária as conexões
necessárias para que o ser passe a uma vida mental totalmente individualizada.
Ao final de mais um longo processo, surge o homem, o corolário do processo de
humanização dos antropóides que o precederam nos esboços percorridos.
Do texto acima transcrito,
retomemos:
Se nos
reportarmos a estes últimos, nós os vemos, mais
exclusivamente ainda, preocupados com a satisfação das necessidades materiais;
o que serve para abastecê-los e o que
pode prejudicá-los resume para eles o bem e o mal nesse mundo.
A incipiente noção de bem e
mal decorre de tudo o que lhe traz, tanto quanto do que lhe atrapalha a obtenção
de alimento e proteção diante do meio ambiente. Estamos falando dos homens
primitivos, aqueles que se destacam dos demais animais por seu potencial de
progresso mental mas que, ainda por algum tempo, arrastam-se nas savanas em
busca de alimento. Esse homem, a cada milímetro conquistado de maior
consciência e capacidade de análise, mais e mais se dá conta de que está
envolto em perigos de toda ordem: predadores grandes e mortais, répteis
pequenos porém peçonhentos, frutos que matam, insetos que picam, enfim, toda
uma imensa horda de seres dispostos a matá-lo, feri-lo, expulsá-lo...
Rapidamente descobre que só mesmo em grupo pode fazer frente a tais perigos.
Não vamos nos preocupar em
resenhar a evolução do homem em seus primevos embates com o meio ambiente. Mas
pensemos em seu mundo interior.
O homem progrediu
descobrindo que há circunstâncias abundantes que o expõem a toda sorte de
perigos. Logo associou tais circunstâncias à noção de Mal. Percebeu, também,
que há circunstâncias outras, normalmente dependentes de atitudes suas, que lhe
trazem maior segurança para sobreviver. Por serem circunstâncias contrárias aos
riscos e perigos, associou-as ao conceito primitivo de Bem.
Ora, de se ver que o homem
primitivo já lançava as bases da religiosidade que ainda hoje campeia na
sociedade: o Mal como algo ruim externo ao homem; e o Bem como algo bom, que o
homem traz de si para evitar o mal.
Como o mal era, para o homem
primitivo, algo imposto pela vida e que poderia matá-lo caso não tivesse os
cuidados necessários, mais significativo fica o seguinte texto de Kardec:
Mas o homem geralmente é mais sensível ao
mal que ao bem; o bem lhe parece natural, enquanto que o mal o afeta mais;
eis por que, em todos os cultos
primitivos, as cerimônias em homenagem ao poder maligno são as mais numerosas;
o medo prevalece sobre o reconhecimento.
Vê-se que o homem
estabeleceu para si, desde tempos primórdios, um sistema filosófico que perdura
e não parece ter data para findar: a dualidade.
O homem aprendeu que existe o Bem e o Mal:
Como se via uma luta incessante entre o bem e o
mal, e, freqüentemente, o mal suplantar o bem; como, por outro lado, não se
podia racionalmente admitir que o mal fosse a obra de um poder benéfico,
chegou-se à conclusão de que existiam dois poderes rivais governando o mundo.
Curiosamente, quando se fala
às pessoas em geral que o “mal” representado pelos perigos do meio ambiente na
verdade não compõem senão a própria teia alimentar e os mecanismos de cada
ecossistema, quase ninguém discorda, achando até mesmo uma certa graça nos
cultos primitivos da religiosidade dos astecas, dos maias, das tribos
africanas, povos aborígenes da Oceania etc. Mas não demonstram a mesma
jocosidade quando anotamos que a mesmíssima dualidade “bem x mal” torna inócuo
o conceito de Deus e Diabo, Jesus e Lúcifer, e assim por diante...
Não são muitos os que estão realmente
dispostos a meditar sobre aspectos, no mínimo, curiosos de nossa origem. Há
quem prefira imaginar que o bom homem é aquele que se põe como um autômato
diante de um Criador vaidoso e tirânico, que exige de todos nada menos do que
medo e obediência cega. Chega a ser irônico que essas pessoas não percebem (ou
não querem perceber) que os ensinamentos do Cristo vão exatamente em sentido
contrário. Os ensinos cristãos pregam o Amor, a tolerância, o perdão, a
mansuetude... Mas não só isso, pregam também a iniciativa de lançar ao chão a
oferenda e partir em busca da reconciliação antes de mais nada...
O espinheiro em que se me
apresenta a Vida, ao invés de uma bestial agressão do demônio, deveria ser
visto como a preciosíssima lição de cuidado e cautela na senda. A via tranqüila
e à sombra constituem perigosíssima provação para nossa prudência e
auto-equilíbrio.
Não há nenhum demônio te arrastando para o
inferno... A não ser você mesmo, cheio de auto-misericórdia e auto-corrupção...
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