terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A CONDIÇÃO HUMANA - 2


É muito difícil entender exatamente em que ponto o ser adquire discernimento suficiente para identificar o caráter ilícito de uma conduta, deixando de se arrastar pelos instintos para decidir sobre o que deve ou não ser feito. Kardec denomina paixões os impulsos que advêm do instinto de conservação, paixões cujo exercício constituem uma necessidade para o atendimento das necessidades materiais das primeiras fases da existência corpórea do Espírito. Em um dado momento, o ser entende que deve atender a essas necessidades ao mesmo tempo em que se vai estabelecendo uma escala de valores em sua incipiente capacidade de avaliação. O ser passa a considerar, desde os rudimentos mais simples, a idéia de certo e errado. Para cada aumento na capacidade de valorar entre certo e errado, aumenta-lhe simetricamente a responsabilidade pela decisão que tomar.

Essa responsabilidade progressiva a partir de certo grau traz a plena imputabilidade do ser humano como sujeito de acertos e desacertos, tornando-o o legítimo destinatário das conseqüências de seus atos.

O ensinamento ministrado no Capítulo VI de A Gênese foi assinado por Galileu (esse capítulo é textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título - Estudos uranográficos e assinadas GALILEU – nota à página 103). Ele revelou a temeridade de ofertar uma exposição clara e pretensamente completa acerca da conquista do livre-arbítrio pelos Espíritos. Ainda assim é um ensinamento profundo e que não podemos ignorar:

Até aqui, porém, temos guardado silêncio sobre o mundo espiritual, que também faz parte da criação e cumpre seus destinos conforme as augustas prescrições do Senhor.
Acerca do modo da criação dos Espíritos, entretanto, não posso ministrar mais que um ensino muito restrito, em virtude da minha própria ignorância e também porque tenho ainda de calar-me no que concerne a certas questões, se bem já me haja sido dado aprofundá-las.
Aos que desejem religiosamente conhecer e se mostrem humildes perante Deus, direi, rogando-lhes, todavia, que nenhum sistema prematuro baseiem nas minhas palavras, o seguinte: O Espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra da sua individualização. Unicamente a datar do dia em que o Senhor lhe imprime na fronte o seu tipo augusto, o Espírito toma lugar no seio das humanidades.
De novo peço: não construais sobre as minhas palavras os vossos raciocínios, tão tristemente célebres na história da Metafísica. Eu preferiria mil vezes calar-me sobre tão elevadas questões, tão acima das nossas meditações ordinárias, a vos expor a desnaturar o sentido de meu ensino e a vos lançar, por culpa minha, nos inextricáveis dédalos do deísmo ou do fatalismo.
(A Gênese – pág. 117)


Entretanto, é do Ensino dos Espíritos a seguinte abordagem da questão do homem enquanto ser inteligente, em comparação aos animais.

592. Se, pelo que toca à inteligência, comparamos o homem e os animais, parece difícil estabelecer-se uma linha de demarcação entre aquele e estes, porquanto alguns animais mostram, sob esse aspecto, notória superioridade sobre certos homens. Pode essa linha de demarcação ser estabelecida de modo preciso?
“A este respeito é completo o desacordo entre os vossos filósofos. Querem uns que o homem seja um animal e outros que o animal seja um homem. Estão todos em erro. O homem é um ser à parte, que desce muito baixo algumas vezes e que pode também elevar-se muito alto. Pelo físico, é como os animais e menos bem dotado do que muitos destes. A Natureza lhes deu tudo o que o homem é obrigado a inventar com a sua inteligência, para satisfação de suas necessidades e para sua conservação. Seu corpo se destrói, como o dos animais, é certo, mas ao seu Espírito está assinado um destino que só ele pode compreender, porque só ele é inteiramente livre. Pobres homens, que vos rebaixais mais do que os brutos! Não sabeis distinguir-vos deles? Reconhecei o homem pela faculdade de pensar em Deus.
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

Ainda assim, o Ensinamento dos Espíritos, harmonicamente com o que foi dito antes (“o instinto é uma espécie de inteligência”), não distingue os animais como seres apenas instintivos.

593. Poder-se-á dizer que os animais só obram por instinto?
“Ainda aí há um sistema. É verdade que na maioria dos animais domina o instinto. Mas, não vês que muitos obram denotando acentuada vontade? É que têm inteligência, porém limitada.”
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

Compreendendo que o livre-arbítrio é um atributo da inteligência, os Espíritos assim se expressam quanto aos animais:

595. Gozam de livre-arbítrio os animais, para a prática dos seus atos?
“Os animais não são simples máquinas, como supondes. Contudo, a liberdade de ação, de que desfrutam, é limitada pelas suas necessidades e não se pode comparar à do homem. Sendo muitíssimo inferiores a este, não têm os mesmos deveres que ele. A liberdade, possuem-na restrita aos atos da vida material.
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

Os animais, pois, possuem liberdade de agir, conquanto nos limites de suas necessidades materiais. Mais do que isso, os animais são dotados de um corpo espiritual que é a sede dessa limitada inteligência, corpo espiritual que remanesce ao corpo físico e que conserva a sua individualidade após a morte deste.

597. Pois que os animais possuem uma inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio independente da matéria?
Há e que sobrevive ao corpo.”

a) - Será esse princípio uma alma semelhante à do homem?
“É também uma alma, se quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta palavra. É, porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus.

598. Após a morte, conserva a alma dos animais a sua individualidade e a consciência de si mesma?
Conserva sua individualidade; quanto à consciência do seu eu, não. A vida inteligente lhe permanece em estado latente.
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

O princípio inteligente que progride nos corpos animais advém do elemento inteligente universal.

606. Donde tiram os animais o princípio inteligente que constitui a alma de natureza especial de que são dotados?
“Do elemento inteligente universal.”

a) - Então, emanam de um único princípio a inteligência do homem e a dos animais?
“Sem dúvida alguma, porém, no homem, passou por uma elaboração que a coloca acima da que existe no animal.”
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

De se notar que os Espíritos ensinam que entre a alma do homem e a alma do animal há uma imensa distância evolutiva:

[...]
Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus

... no homem, passou por uma elaboração que a coloca acima da que existe no animal.
[...]

Evidencia-se que o princípio inteligente evolui até atingir a condição de individualidade e, depois, a consciência de si mesmo:

607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?
“Numa série de existências que precedem o período a que chamais Humanidade.

a) - Parece que, assim, se pode considerar a alma como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, não?
“Já não dissemos que todo em a Natureza se encadeia e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos. Assim, à fase da infância se segue a da adolescência, vindo depois a da juventude e da madureza. Nessa origem, coisa alguma há de humilhante para o homem. Sentir-se-ão humilhados os grandes gênios por terem sido fetos informes nas entranhas que os geraram? Se alguma coisa há que lhe seja humilhante, é a sua inferioridade perante Deus e sua impotência para lhe sondar a profundeza dos desígnios e para apreciar a sabedoria das leis que regem a harmonia do Universo. Reconhecei a grandeza de Deus nessa admirável harmonia, mediante a qual tudo é solidário na Natureza. Acreditar que Deus haja feito, seja o que for, sem um fim, e criado seres inteligentes sem futuro, fora blasfemar da Sua bondade, que se estende por sobre todas as suas criaturas.”
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

Nesse texto de O Livro dos Espíritos, em consonância com o anteriormente referido ensino do Espírito referenciado como Galileu (A Gênese – pág. 117 – “O Espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra da sua individualização. Unicamente a datar do dia em que o Senhor lhe imprime na fronte o seu tipo augusto, o Espírito toma lugar no seio das humanidades.”), não parece haver outra possibilidade senão a de ver a origem comum do homem e todos os demais seres criados.  Veja-se que a pergunta pressupõe a alma como tendo sido o mesmo princípio inteligente dos seres inferiores da criação, advindo, da resposta afirmativa, que há identidade entre eles. Não há uma criação especial para o homem. Sem embargo, o homem representa já uma fase, essa sim (fase), especial em relação aos animais e seres mais simples.

De qualquer forma, é assim expresso pelos Espíritos:

610. Ter-se-ão enganado os Espíritos que disseram constituir o homem um ser à parte na ordem da criação?
“Não, mas a questão não fora desenvolvida. Demais, há coisas que só a seu tempo podem ser esclarecidas. O homem é, com efeito, um ser à parte, visto possuir faculdades que o distinguem de todos os outros e ter outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação do seres que podem conhecê-Lo.
(O Livro dos Espíritos) (Grifei)

Na tradução de J. Herculado Pires:

610. Os Espíritos que disseram que o homem é um ser à parte na ordem da Criação enganaram-se, então?
– Não, mas a questão não havia sido desenvolvida, e há coisas que não podem vir senão a seu tempo. O homem é, de fato, um ser à parte, porque tem faculdades que o distinguem de todos os outros e tem outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecer.
(O Livro dos Espíritos – grifo original)

Os Espíritos deixam assente que há informações que só devem vir plenamente no tempo certo da maturação do conhecimento humano. Então, conquanto asseverem que a espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem atingir o conhecimento (que podem conhecê-Lo), é imperativo harmonizar-se esse informe com tudo o mais que foi codificado pelos Espíritos. A alma, ou seja, o Espírito encarnado, foi o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, como já destacado mais acima. Ademais o trecho mais significativo é:

[...] o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos [...]
(O Livro dos Espíritos – pergunta 607-A)

Na tradução de J. Herculano Pires:

[...] o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. É então que começa para ele o período de humanidade, e com este a consciência do seu futuro, a distinção do bem e do mal e a responsabilidade dos seus atos [...]
(O Livro dos Espíritos – pergunta 607-A)

Desse modo, concluir nos estritos limites da parte final da resposta dada à pergunta 610, concebendo o homem como um ser originário de uma criação especial, criaria uma antinomia interna na Doutrina Espírita, situação inconcebível ante a origem dos ensinamentos.

Sem dúvida a interpretação para essa resposta, no contexto de tudo o mais que foi exposto pelos Espíritos, implica em considerar que o homem é especial aos olhos de Deus por ser homem. Ou seja, um ser que atingiu a fase de humanidade

Um comentário:

  1. Vamos questionar?
    Neste texto (ou no anterior?) está a afirmação de q só o homem é inteiramente livre. Penso q já questionamos isso, e afirmamos 'que é exatamente o contrário'. O homem é inteiramente preso: preso ao passado, às experiencias anteriores, aos medos, às crenças, tradições, culturas, religiões, às todas suas dependencias, às ilusões, à compreensão adquirida até o ponto em está em seu aprendizado etc etc. Ele pode por sua vontade ir além disso?
    Pelo texto, a 'formação' do homem passou por um pocesso de elaboração acima da dos animais (mas todos procedem do mesmo ponto de partida, como o texto tb diz). E, "Há entre as almas dos animais e a dos homens distancia equivalente à que existe entre a alma dos homens e Deus". Não se deduz dessa afirmação q o homem tem privilegios q os animais não tem? Isso não seria como julgar Deus como um ser parcial? Há ainda mais: "A especie humana é a q Deus escolheu para os seres q podem conhecê-lo (ou q podem 'conhecer', como acrescenta um dos autores); o homem é especial aos olhos de Deus por ser homem".
    Felizmente o texto esclarece, ao final, tudo, isto é: não há uma criação especial para o homem, donde se deduz q o homem já passou pela fase dos animais inferiores e progrediu até o ponto em q está.
    Mas, será verdade q a inferioridade do homem perante Deus é-lhe humilhante? O homem não é esse ser q foi criado simples e ignorante, q já passou pela fase de animal inferior, e está, aos poucos crescendo, amadurecendo?!
    Ser-lhe-á humilhante ser inferior ao seu proprio Criador, o Todo Poderoso q criou todas as coisas?! Do qual o homem deve obedecer as leis?
    E mais: "O homem, (então), passa a ter consciencia de seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade de seus atos". Esse não será o 'super-homem'? Com toda sua prisão ao passado e medo do desconhecido q é o futuro à sua frente, o futuro não lhe é uma incógnita, apenas expectativas e imaginação? E adquire mesmo a capacidade de distinguir o bem do mal, coberto q está de condicionamentos e ilusões? Se sua mente é limitada, condicionada, ele consegue fazer isso? Distinguirá o bem do mal ou apenas, em face de sua ignorancia, medos etc, imaginará q distingue? Não devemos analisar estas questões, ou devemos simplesmente crer em tudo aquilo q religiões, crenças, etc nos dizem? Todas as informações não nos vieram através das mentes do homem? Por mais q queiramos dizer q podem vir tb de seres superiores (é evidente q sim)serão, todos aqueles que nos informam, seres superiores? A propria doutrina espirita explica a 'fascinação', mostrando como todos podemos ser enganados. As informações estarão, por mais instrutivas e belas q possam ser, integralmente corretas, absolutamente corretas?

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