O MONGE
Essa é a história de um Monge.
Dizem que foi assim.
O monge caminhava só com o olhar
perdido no sol que lentamente se punha por trás da Serra da Mantiqueira. Tomou
na destra o terço antigo, regalo de um Bispo que gostara do clamor de suas
orações. Parou. Observou-o arqueando o sobrolho direito. Que fazer com aquele
tão querido objeto agora?
A fuga do Mosteiro não poderia ter
sido mais fácil. Após 42 anos lá vivendo ninguém desconfiaria de que aquela
saída, embora não autorizada, iria além das margens do rio para as costumeiras
colheitas de pequenos frutos silvestres. Todavia, ali estava ele agora, muito
além dos arbustos, pisando mato, espinhos, terra e pedras. Os pés descalços não
se deviam a um esquecimento. Desejou como nunca sentir o mundo sob si mesmo. O
mundo que, um dia, ele pensou ter começado a entender.
Retomou o passo ao mesmo tempo em
que, num esforço máximo, atirou o terço nas águas do rio. Uma estranha sensação
de heresia envolveu-o ao mesmo tempo em que não podia evitar um incerto alívio.
Ouviu mugidos ao longe. Cães
ladravam em auxílio ao campesino que lutava por reunir os animais para a noite
que rapidamente caía. Logo nada mais importaria. O homem com chapéu de palha,
mesmo distante, acenou energicamente com um grande sorriso. Nada lhe restou
senão devolver a gentileza, com amargor e medo. Voltou-se e vislumbrou o
Mosteiro como um vulto escuro e majestoso. Logo estrelas pontilhariam o céu.
Aquele mesmo céu que lhe serviu de altar, na janela de sua pequena cela, em
infindáveis preces e êxtase de bem-aventurança.
O grisalho Monge jamais aprendera
a nadar. Temia as águas, a correnteza forte que se afastava do Mosteiro em
direção à cidade e sua vida mundana. Mas agora tinha uma indescritível certeza
de que terminaria no frio daquele abraço.
Um pecadilho despedaçara sua fé,
suas crenças, sua vocação monástica. A satisfação de um desejo pequeno, não
carnal, simples, foi-lhe a chave para abertura dos portais do inferno.
Seu irmão gêmeo visitava-o de
quando em quando.
Insistia sempre nas desagradáveis perguntas sobre sonhos,
pesadelos. Chegava a ajoelhar-se suplicando que contasse. Mas sempre, conquanto
com carinho sincero, o Monge o soerguia garantindo-lhe que, ali, na atmosfera
das orações e louvores, somente sonhava com os Anjos do Senhor.
O irmão se retirava e prometia
voltar, sempre repetindo que um dia teria que contar a verdade.
Semanas, meses, anos. Numa tarde
chuvosa o gêmeo chegara todo molhado. Vários clérigos acorreram com toalhas e
roupas secas. A maioria olhava de soslaio para o Monge como a dizer “ele sempre
vem, mesmo que chova”. Dessa vez tinha algo mais. Um pacote que recusou-se a
entregar mesmo ao verter suas vestimentas. O pequeno pacote estava envolto em
plástico, providência presciente da chuva que, desde a cidade, já se avizinhava.
O pátio em que ocorriam as visitas foi excetuado e autorizaram a subida do
visitante à cela do Monge. Longo tempo conquista pequenos privilégios.
Fechada a porta, o Monge estava
levemente irritado adivinhando as velhas perguntas que ouviria. Não obstante, o
gêmeo nada perguntou. Sentou-se na única cadeira deixando que seu irmão ficasse
com a cama. Segurava o pacote contra o peito e fitava o irmão com doçura mas
sem sorrir. Pela primeira vez o Monge iniciou o colóquio. O gêmeo baixou a
cabeça ao ouvir cogitações sobre o dia a dia na cidade, os parentes, o
trabalho, as visitas ao cemitério. Logo o Monge percebeu e aquietou-se.
O olhar de ambos congelou por
infindáveis segundos. A interação gemelar gritou no silêncio reinante. O gêmeo
estendeu a mão e ofereceu o pacote. Não respondeu à pergunta sobre o conteúdo.
Levantou-se e abriu a porta. Antes que o Monge pudesse palavra dizer, um olhar
ríspido e francamente acusatório calou-o.
Nunca mais o irmão veio ver seu
gêmeo religioso.
O Monge logo viu que parecia um
livro, mas era um caderno de capas duras. Estava todo anotado. Nícolas, seu
irmão, havia escrito cada um dos sonhos, com a data e o horário em que
despertara. Usara caneta de tinta preta e todo o grosso caderno estava usado.
Uma lágrima desceu-lhe à face
percorrendo os sulcos que o tempo abrira na face. Fechou os olhos e esmagou as
lágrimas vindouras. Deixou o caderno na cama e puxou levemente o pequeno
armário suspenso em que mantinha sua Bíblia e aparatos litúrgicos. Ao solo caiu
um caderno. De capas duras, grosso, todo anotado em tinta azul.
Página por página, palavras muito
semelhantes rebuscavam as mesmas datas e horários. Ele sabia. Seu irmão sabia.
Ele, por baixo de seu hábito, tinha a fé a lhe sustentar. Seu irmão, solto no
mundo, só recebeu contumaz negação ao pedido de socorro.
Veio-lhe à mente o dia em que Nícolas lhe
passou, disfarçadamente, o volume de um certo Zecharia Sitchin. Nícolas, que só
o chamava de Monge, advertiu-o com o nome de batismo, Zacarias, de que o
conteúdo poderia mexer com sua fé. O Monge ainda achou jocosidade ao apontar
ser o autor de mesmo nome e que, portanto, estaria seguro.
O livro, ao qual seguiram-se
alguns outros, falavam de tempos idos, muito antes da estruturação da fé
cristã. Tratavam da tradição suméria e do surgimento do homem por interação com
seres de outro planeta.
Zacarias iniciou a leitura,
maçante e tediosa, julgando que Nícolas certamente havia exagerado muito. Ainda
assim, eis que a disciplina rígida da formação sacerdotal o fazia terminar cada
livro que iniciasse. E foi assim que, vencida a resistência inicial,
ultrapassados dois terços da leitura e com a familiaridade de certos conceitos
e nomes, o Monge não conseguiu evitar uma crescente curiosidade sobre o que
haveria mais a conhecer sobre aquele tema.
Eram blasfêmias, com certeza.
Blasfêmias que adocicaram o sabor pelo conhecimento.
Foram mais algumas visitas em que
brilharam os olhos de Nícolas. Para seu espanto, o Monge pedia outro livro, e
mais outro, e mais outro. Todos dissimuladamente passados com a devolução do
anterior.
Em meio a esse processo, Nícolas
assombrou-se com um pedido simples. Zacarias queria um caderno, de preferência
de capas duas e com muitas folhas. Soerguendo as sobrancelhas, Nícolas exultou.
Jamais Zacarias ficaria sabendo que seu irmão comprara dois naqueles moldes no
mesmo dia. Não apenas isso. Tinha-os consigo na valise. Mais uma caneta azul e
uma preta.
Foi a partir de então que as
visitas de Nícolas iniciaram o ciclo de perguntas sobre sonhos.
Zacarias mesmo agora não entendia
o porquê de ter atavicamente negado ao irmão que estivesse sonhando as mesmas
coisas. Que nos sonhos ambos interagiam. Eram amigos de seres que retornariam em breve. Agora não
poderia mais lhe dizer. Antes do final de semana passado chegara a notícia para
que todos orassem, pois o conhecido amigo de todos, Nícolas Gemma, havia
morrido num acidente de carro.
O Monge bem adivinhara o crime
exponencial. Nícolas se suicidara.
Zacarias deu-se conta de que
estava já há algum tempo parado ali. Próximo do rio, no escuro. Certamente o
estariam procurando no Mosteiro.
Não desejava ver mais nenhum
amanhecer.
Não suportaria vivenciar mais
nenhuma mentira. O Clero esmerava-se em ver a grande obra de Deus iluminando os
céus da Terra com dois Sóis maravilhosos que representam o tempo da bonança. O
ainda pequenino “Sol” já marcava sua presença no mundo todo. Os dias estavam
mais quentes. Derretendo o que restara da fé do Monge Zacarias.
As águas o acolheram num abraço
amigo. Num carinho em que reconheceu o doce e fraterno amplexo de Nícolas,
bem-aventurado e bem acompanhado.
Afinal, não existem pecados.
Marco A L Silva
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